A ESCRITORA
Com um livro fechado sobre a mesa da cabeceira e algumas folhas de papel em branco espalhadas sobre a escrivaninha, a escritora Pilar de Andrade bebericava um uísque, refletindo sobre os caminhos que percorrera . Caminhava pela casa, exteriorizando em voz alta seus sentimentos. Vincos haviam se formado ao redor dos lábios, denunciando a quantidade de cigarros que a acompanhava, e olheiras mostravam noites insones. - Quando podia viver livremente a minha mocidade, cismei de casar, só pra sair de casa... Vivi dias insuportáveis . Não agüentava nem o cheiro daquele homem! Fiquei viúva cedo, mas já não tinha o vigor da mocidade. Pra mim, a vida era só uma obrigação . Chegando aos quarenta, decidi viver sozinha, cansada das frustrações de relacionamento a dois. Sempre pensei que, desta forma, estaria livre de decepções, traições e invasões de privacidade; me agradava ser uma mulher só. Não nasci pra dividir minhas coisas e, além disso, a solidão me trazia inspiração pros meus roteiros.Assim pensava, mas hoje, o que faço de minha vida?-
A solidão, vivenciada por tanto tempo, agora incomodava. Já não tinha tantas certezas. Olhava os inúmeros livros lançados, pensava no sucesso conquistado no meio literário , o público fiel... Era considerada um ícone entre os contestadores do sistema, e uma aura de mistério envolvia sua figura . Mas, nesse momento, ela se perguntava: - Pra quê ?
-Nunca entendi essa coisa pesada que carrego desde minha adolescência; essa nostalgia ... Sempre me neguei a procurar respostas em psicoterapias , nunca quis revirar meu passado. Mas agora... que coisa insuportável.! - Não resistiu e chorou todas as lágrimas represadas . Colocando mais uísque no copo, pegou um frasco de pílulas cor-de-rosa , ingerindo algumas.
- Não consigo ler este livro, nem escrever sobre estas folhas de papel. Sinto que já li e escrevi sobre todos os fatos e sentimentos . A vida é inútil, o mundo nada mais tem a me oferecer .Enfado é a palavra que define meu estado de ânimo -
Levantou-se, foi até a janela, observando o entardecer. As mangueiras carregadas e as amoreiras em flor trouxeram cenas da infância, logo repelidas. O labrador Rex a olhava, abanando levemente o rabo. - Como Rex está envelhecido! Claro, assim como eu, assim como a própria vida... -
Fechou a janela e colocou na estante o livro que estava sobre a mesinha da cabeceira. Rasgou as folhas de papel, pegou o copo com uísque, engoliu mais alguns comprimidos e retirou do fundo da cômoda uma caixinha de música há tempos guardada .Deu corda para que tocasse aquela melodia que a fizera sonhar os mais belos sonhos na infância. A caixinha era prateada , emoldurada por desenhos inspirados nas ruas de Salvador, cidade natal, de onde saíra aos seis anos de idade e nunca mais retornara.
Adormeceu, transportando-se para outras fases da vida. Vislumbrou flashes da última imagem que vira de seu pai, saindo pela porta dos fundos da casa, o choro convulso da mãe e a súbita partida daquela cidade que tanto amava.
Por fim, se viu menina e feliz. Manhã de dois de fevereiro, águas de Salvador, festa do Rio Vermelho. Ofertava flores, espelhos e perfumes a Iemanjá, saudando-a : - Odoyá... Odoyá...Odoyá...
O semblante pacificado sugeria o encontro da tão esperada inspiração para uma nova história...
Nunca vi um suicídio escrito com tanta leveza... Os religiosos ficariam aterrados com seu conto...
ResponderExcluirValeu, amigo!!!!!!!!!!!!!
ExcluirBel