sábado, novembro 12, 2011

Que doença danada! Foi minando meu corpo e, agora, já não tenho sequer como andar, e rastejo.

Marcas do tempo

[A Mulher e o Tempo - Acrílico/Lienzo ]
Belvedere  Bruno

Debruçada na janela,  observo  o   mundo que,  há tempos, se constitui  no cotidiano de uma  rua de periferia.  O cansaço chegou, somado   a dificuldades  no caminhar, e  a visão,  turva ,  me mostra apenas  uma  sucessão de dias  monótonos, vazios .  Muitas vezes, me   pergunto se vale a pena viver  sem motivações ,  alegrias, esperanças .  Nada existe    que   me  prenda a esse  mundo.   Olho os novelos de  lã, que sempre foram fontes  de alegria e prazer, e me  lembro das  colchas, coletes, vestidos e  blusas que, carinhosamente, tricotava  para  minha  família.   Era meu    passatempo  preferido, mas  agora,  com essa  insensibilidade nas pontas dos dedos ...  tento , mas em vão. As agulhas caem , as linhas se embaraçam . Desisti, também , das revistas, pois meus olhos vêem  nelas apenas borrões.  Que doença danada! Foi minando meu corpo e, agora, já não tenho sequer como andar, e rastejo.   De tão calada que passo meus dias, sequer consegui , na visita médica mensal, explicar  o que sinto de esquisito . As palavras ficaram travadas  e  o máximo que consegui  emitir pareceu  um grunhido . Foi quando me dei conta de que já estava excluída da vida. Lembrei, sorrindo, de uma matéria de  revista, que  falava   sobre  certas culturas; países  onde as  pessoas se preparavam para a morte, se deitando, ou sentando, até que Ela chegasse.  Eu  me sento   todos os dias, horas a fio,  esperando-a, e Ela  não vem.    As forças se extinguem.  Sei  que  a solidão é  algo  de que  não se  corre, principalmente quando as pernas  já não servem para nada, e a cabeça sempre  se esquece de  raciocinar.  Vario  demais. Chego a ver nos outros o rosto  do   meu pai, da minha mãe...  
Não gosto de contar sobre a dor que  marcou   minha  vida.   Foi por conta da minha única filha que, duas semanas após meu aniversário de oitenta anos, disse que não podia mais  ficar comigo e me trouxe  para esse asilo.   Não pensei que fosse um adeus, até que os anos  passaram. E assim , fiquei só.
Daquele dia em diante, nunca mais senti  dor. Dormências, sim. Esquecimentos... 
Por anos a fio, vivi entre novelos de lã, tricotando, lendo revistas e vendo a vida passar  através  da janela.
Agora, cansada, todos os dias me sento,  à espera de quem, decerto, não me  faltará, e virá, algum dia.

3 comentários:

  1. Bel,
    Seu texto,uma forma muito educativa de alertar.
    De fazer pensar, levar a parar e a refletir.
    "A vida é um grande e completo texto, que precisa de muitas vírgulas para ser escrito, ainda que essas vírgulas assumam em alguns momentos formatos de lágrimas."
    (Augusto Cury)
    Há lágrimas, no entanto, que jamais deveriam ser derramadas.
    Basta saber que um dia caminharemos todos
    pelas mesmas trilhas, e a solidariedade,
    o amor e o carinho são as maneiras únicas
    de tornar viável o viver, com dignidade, até
    o fim.
    E isso vale para todos.
    Parabéns!
    Beijos,
    Eliana Crivellari-BH-MG

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  2. Bel, o título deste conto suscita já uma certa reflexão, porque me remete para uma das maiores angústias da humanidade: a efemeridade da vida, as "marcas" de um tempo que passa inexoravelmente.
    Este texto levou-me a reflectir no problema do envelhecimento e no drama do abandono e da solidão dos idosos, nos tempos que correm. Eles não só têm de enfrentar a deterioração da saúde física como graves perdas sociais e emocionais que os levam a não ter sequer uma razão para acordar de manhã. Por isso, " agora cansada, todos os dias me sento, à espera de quem , decerto, não me faltará, e virá, algum dia".
    Para a personagem-narradora deste conto, o trabalho e a família foram o seu único investimento ao longo da vida, pelo que o envelhecimento se torna ainda mais dramático, numa época que não sabe ouvir o Outro.
    Os idosos têm histórias ricas para contar e uma necessidade pungente de encontrar alguém que os oiça, mas vivem numa sociedade que tem o culto da juventude e que, também por isso, não repara na sua presença.
    Obrigada por este conto, Bel!
    Abraço
    Maria João Oliveira

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  3. Amigas queridas

    Obrigada por entenderem minhas verdades. São doidas, mas reais.
    Bjs
    Bel

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